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Rua da Pedra |
O Buraco
Capítulo X -
O Pé de Bota e o caça-níquel
...ninguém está acima das vozes do mundo...Júlio Diniz, 1839-1871,
autor de As Pupilas do Senhor Reitor, a sua melhor obra
Com a avó atrás do toco. Naquele dia insondável, o nosso Pé de Bota acordou de madrugada em estado anímico que podemos definir pela expressão antiga: com a avó atrás do toco. A sua mulher dado o barulho do homem que limpava a garganta de quando em quando, também despertou muito mau humorada e ficou passando às mãos nos olhos, retirando as remelas. Inadvertidamente, em um ato pouco pensado, ela levou a mão esquerda com muita rapidez, dado o irritamento em que se encontrava, para retirar a remela do olho direito. Esta ação corporal gerou uma tragédia dinâmica, uma vez que a força do seu pesado braço esquerdo fez com que o seu corpo balofo rolasse para a direita e caísse da cama como uma pipa cheia de vinho desabando de uma adega e desse direto com a testa no cimento frio. E um galo graúdo iniciou a sua saga em sua testa;
...As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra e antes de uma eleição.
Otto Von Bismarck, 1815-1898, primeiro chanceler do império alemão
O Pé de Bota, de olho na tragédia. farejando malfeito, abriu um sorriso da largura de uma enxada, e rindo, com a boca, deverasmente doce, chegou a esfregar às mãos de felicidade. A sua patroa não achou nenhuma graça nisso, ficou furibunda, em ponto de guerra doméstica e levantou-se do chão, pisando pesado, direto para o banheiro, onde pegou a escova de dente com violência e a pasta com ânsias de esmagamento, soltando cobras e lagartos. Algum tempo depois passou pelo quarto e embicou para a cozinha. O Pé de Bota fez as contas e conclui que tinha começado o dia ruim e que logo depois tinha se divertido a valer às custas de sua mulher. Estava, portanto, empatado em termos de ganhos e perdas. Em seguida sentou-se na mesa todo pimpão esperando o seu cafezinho com pouco açúcar, como era do seu agrado, o seu leitinho quente com Toddy e o pão com a devida manteiga. Ficou ali sentado com ar zombeteiro e expressão abobalhada e irritante. A patroa farejando o deboche do bofe e urdindo uma vingança óbvia, bradou retumbantemente que o café da manhã estava suspenso naquele dia. O nosso herói que gostava bastante destas iguarias matinais e todo dia antes de devorá-las ficava na mesa salivando à espera delas, o que fazia que começasse o dia feliz. Neste momento fez novas contas e concluiu que tinha começado o dia ruim, que o dia tinha melhorado com o tombo da patroa e agora piorara com a suspensão do café da manhã, ou seja, estava no prejuízo, com o placar marcando 2x1 em seu desfavor. O sangue subiu para cabeça do nosso personagem e como sempre acontecia, ficou possesso. Ora essa, ficar sem o café era o fim da picada e desferiu vários impropérios em direção à patroa acompanhados com alguns estrépitos de eletrodomésticos. O instinto feminino respirou o perigo e, incontinente, lançou mão de uma faca de cozinha pontuda e com o corte bem afiado e segurou-a com mãos firmes, pronta para a escaramuça. O homem, sentindo a ameaça, fez cara feia, a mulher rosnou de volta. A vizinhança do casal atenta aos fatos já sentia sangue quente, viatura policial e boletim de ocorrência, algo desagradável e prazeroso para ela. Não houve sangue e queijandos, ambos recuaram, em uma nuance racional.
O caminho. Endoidecido, o nosso personagem chegou à conclusão que era melhor tomar outros ares e, dando meia volta tomou a porta da sala e ao sair bateu ela violentamente, as paredes estremeceram, a mulher sorriu vitoriosa. O seu cão Carente percebendo a sua presença veio ter com ele fazendo festas e abanando o rabo, levou um chute e saiu ganindo triste. Depois de caminhar algum tempo, finalmente, chegou a Rua da Pedra e pôs-se a equilibrar em suas pedras irregulares e desniveladas, muito preocupado em não levar um tombo nestes traiçoeiros elementos. Ao avistar a Rua Americano do Brasil, descambou para à esquerda em suas ronceiras pernas, sacolejando a sua enorme e gelatinosa pança de um lado para o outro, ao final, já sem fôlego, deparou com a movimentada Rua 15 e foi direto para a Rodoviária Velha.
Ali, logo se achava no estabelecimento comercial do Zé do Bar onde cumpriu o seu ritual de sempre, ou seja, ir até a parede onde foi contemplar um pôster, amarelado pelo tempo, do Vila Nova de 1963, ocasião em que foi tri-campeão, ao depois, já mais aliviado sentou-se em uma mesa de ferro que se achava bem à frente de uma máquina caça-níquel, seu vício nos últimos anos, e passou a contemplá-la com olhos mornos e apaixonados. Ficava encantado com o colorido da máquina; as suas luzinhas de todas as cores perturbavam os seus neurônios volúveis; a alavanca e seu barulho arrebatante, não deixavam por menos, proporcionavam os melhores momentos; segundos antes de descê-la sentia esperanças verdadeiras de lucro grosso desembocando pela boca metálica, estes segundos antes de puxar a alavanca eram adrenalina pura para a sua mente, conturbada na hierarquia e na disciplina.
Zé do Bar. Este ao vê-lo ali tão cedo abriu um sorriso, esperava presa fácil, e além do mais tinha uma notícia quentinha para ser repassada aos demais. Queria compartilhar com alguém, com sofreguidão e muitos sorrisos marotos, o assunto que rolava de boca em boca e que já estava sendo conhecido como O Caso do Ceguinho. O início deste assunto deixou o nosso personagem deverasmente contrariado. Ora essa, passar por uma briga doméstica bem cedo, ficar sem o seu Toddynho com leite tinha sido horrível, agora, ouvir falar de outra briga doméstica dentro das emoções da sua, era o fim. Depois de fazer uma cara meio abobalhada disse:
- Ahnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn! Mostrando desinteresse.
- Pois é, dizia o Zé do Bar, e não é que aquele bebinho lá do Setor Aeroporto tomou todas, ate ficar sem um tostão. Ficou rico, bonito, valente e abusado, essas coisas de bêbado, só que quanto mais bebia mais queria beber, parecia tomado por um Exu sem luz que não o largava de jeito nenhum, o que em resumo podemos denominar cientificamente de um verdadeiro inverno alcoólico. Enfim, em abusos, foi ter com a sua patroa, exigindo o restante do dinheiro da família para mais álcool. Só que a mulher desta vez bateu pé e tomou firme opinião que não o daria em hipótese alguma, isto é, não aceitaria abusos. Isto foi o bastante para ameaças de agressões físicas e, dado o adiantado da hora, foi dormir com a sua filha lá na casa do Ceguinho, seu amigo, ali bem perto.
E continuou, com ares zombeteiros:
- acredite, o bebinho tirou uma soneca e lá pelas três da manha fez contas e chegou à conclusão que a sua mulher lhe tinha humilhado duas vezes, uma em não lhe fiar dinheiro para as águas-de-cana, o qual tinha direito por ser lavrador honesto e trabalhador e em ir dormir na casa do vizinho, fazendo escândalo grosso com toda a vizinhança. Se julgou injustiçado nesse mundo e foi tirar as corretas e devidas satisfações. Ali na casa do Ceguinho tinha um hóspede, um seu amigo, que pousava ali sempre e foi este quem recebeu o bêbado e, como não tinha menor paciência com este tipo de gente tratou-o com muita dureza, ao perceber o estado alcoólico do malino, sem falar nos impropérios entre bocejos e fechar de olhos. Esclareço que o hóspede tinha roçado pastos e estava com o corpo moído. O embriagado recuou e voltou para a sua casa, já no quarto, sentindo um calor enorme devido aos impropérios recebidos, resolveu tirar toda a roupa. Este cidadão , novamente, fez umas contas confusas e chegou a conclusão que na estória tinha sido ofendido por três vezes, e que as coisas não deveriam de ficar assim. Dado ao seu estado cambaleante vestiu tão somente as calças, esquecendo de colocar camisa e cueca e mirou a casa do Ceguinho com resolução firme, ali viu um belo porrete na entrada da casa e se armou dele e, ao depois passou a chutar a porta com muitos desaforos. Todos da casa acordaram em sobressaltos e o hóspede foi atender o bebinho e ao colocar a cachola para fora recebeu um baita de um golpe e caiu desfalecido no solo. Tombou como uma jaca. O embriagado ficou estático, não acreditava no que tinha feito, só que o hóspede recobrou as suas forças rapidamente e ao passar a mão pela cabeça e ao ver sangue quente ficou possesso, imbuído de tenso e inebriante animus necandi. Se levantou e tomou o cacete daquele e rumou um golpe certeiro em sua cabeça, o infeliz caiu sentado e indignado, e tomando forças se levantou e os dois travaram uma luta, instante em que o Ceguinho já intervinha. Sem saber o que fazer na disputa, o Ceguinho urdiu um plano infalível, ou seja, avançou nas calças do bêbado para retirá-las com bastante empenho. Acreditava que se retirasse as calças do infeliz poderia acalmá-lo pela vergonha do nu.
Neste momento, o Pé de Bota desatou um sorriso alto, às bandeiras despregadas, estava achando o caso todo digno de ouvidos e firmou o peito para apreciá-lo melhor. E veio repentinamente em sua cabeça a ideia de que tinha se saído de sua briga doméstica muito melhor que o bebinho, sopesou que no seu caso não haviam porretadas recíprocas, portanto, estava no lucro. E lascou com ironia e malícia:
As reais intenções do Ceguinho devem ser rigorosamente investigadas pela polícia. Continue, aproveite o intervalo e me traga uma água-que-passarinho-não-bebe. O Zé do Bar que contava e ria, perdeu o rebolado do caso e foi buscar a água-de-briga com um riso menor na sua face avermelhada. Ao depois, perguntou:
- Onde estava mesmo!
Retrucou o outro sorvendo todo o cobertor-de-pobre com ar zombeteiro:
- No embaraço das calças, continue! conheço o cidadão, é osso duro de roer, gosta de confusões, só Freud explica, um louco da silva, uma verdadeira peste, já me deu trabalho, continue!
- Outra limpa-goela, compadre!
- Ora essa, não devemos perguntar se defunto quer cova, fala sério, manda outra tira-vergonha, rápido, isso é pra quem sabe beber!
- Bem, nunca se esqueça que ninguém está acima das vozes do mundo, é regra universal, o caso é que o Ceguinho conseguiu retirar as calças do bêbado que ficou desesperado ao se ver completamente nú. O pior veio depois, cumprindo a regra que desgraça pouca é bobagem, é que o Ceguinho de posse das calças arremessou-as com tanta força que elas foram parar no quintal do vizinho. A cena tétrica, nefasta e nefanda para o bebinho de ver as calças alçarem voo em hora desapropriada fez com que ele melhorasse de sua cachaça como por um milagre. De longe ouviu o barulho da viatura da polícia e achou melhor sair correndo pela rua completamente nu, com o objetivo sólido de adentrar em um matagal próximo. De nada adiantou, foi preso e às pressas arrumaram-lhe uma calça e o caso agora está sob os auspícios da Lei Maria da Penha.
- Veremos como o bebinho se sairá desta, veremos! repetia balançando a cabeça o nosso pequeno empresário. Essa lei vai endireitar essas peças ou vai extingui-las.
- Deixa disso homem, o indivíduo se dará bem, afinal, ele tem pouco a perder, é um bêbado irresponsável, um exu sem luz, e é o que mais temos aqui neste buraco de uma figa, o assunto, no resumo de tudo, é um problema social. Vamos traga-me outra engasga--gato, coloca a música de minha vida que depois vou te contar uma boa desta peça rara.
E o barzeiro pela milésima vez colocou a música da vida do cidadão de Leo Canhoto e Robertinho ou O Homem Mau:
Atenção crianças, não fiquem na rua!
O terrível Homem Mau esta ali no bar.
Eu sou o Homem Mau, eu sou mau, mau mesmo
Vendeiro traz cachaça com farinha pra todos
Vamos logo, mistura esse negócio ai, é pra todo mundo beber
Onde vai moço?
Eu vou indo embora, eu nunca bebi (tiro)
E nem vai beber
E você ai, como é seu nome?
Meu nome é Pedro ( Homem mau dá um tiro em Pedro que fal bem fino)
Era Pedro, agora é Defunto. Hahahahaaaaaaaa
Sua cara muito feia dava medo até de ver
Quando entrava na cidade dava tiros pra valer
Não tinha nenhum amigo, só vivia pra matar
Certa vez numa vendinha veja o que foi se passar:
Quem é o dono dessa porcaria aqui? (O homem mau pergunta)
Sou eu, senhor
Então, ta dormindo? Traz Whisky logo.
Não tem Whisky?
O que é que eu bebo então?
Bebe leite!
Quem bebe leite é bezerro! (O homem mau dá um tiro no vendeiro)
Toma! Aprenda a respeitar o Homem Mau.
E essa mulher de quem é?
Essa mulher é minha! (tiros)
Era sua, agora é minha! Hahahahahahahaaaaaa
Certa vez mais um bandido apareceu no povoado
Pra matar o Homem Mau ele veio contratado
O Homem Mau falou pra ele:
-Você veio me matar! A madeira do caixão você já pode encomendar
Então você veio me matar não é? Quem é você?
Eu sou o famoso Billy Gancho por quê? (tiro)
Pronto. Era Billy Gancho, agora é Defunto Gancho. Hahahahahahahaaaaaa
Todos tem seu dia certo, todos tem seu fim marcado
Pra acabar com o Homem Mau veio de longe um delegado
Os dois homens frente à frente lá na rua se encontraram
O Homem Mau e o delegado desse jeito conversaram
Então você é o delegado que veio acabar comigo?
Qual é o seu nome delegado?
Meu nome é Justiça. Você está preso Homem Mau.
Hahahahahahahaaaaaa...Quem é você para me prender delegado?
Fique sabendo que eu sou o Homem Mau, Mau. (tiros)
É você era o Homem Mau, agora é Defunto Mau.
A justiça sempre vence
Terminou aquela intriga
O Homem Mau amanheceu com a boca cheia de formiga
Lá na sua sepultura escreveram com desdenho:
"O Homem Mau morreu deitado e não faz falta pra ninguém"
Este som provocou enlevos e arrepios no cidadão que sorveu o xarope-dos-bêbados com boca doce, e depois de ouvi-la começou:
-Veja só, vou lhe contar outro caso do cidadão, dias atrás, já de madrugada, em minhas patrulhas, lá pela descida da Serra Dourada, passou um cidadão em uma camiooneta C-10 jurando que tinha visto um corpo no asfalto. Não acreditei no que ouvia, no entanto, para não ficar com a consciência pesada, fui ver o caso e não é que logo à frente o vi deitado na pista de rolamento. Nunca fiquei tão indignado na minha vida. Encontrar um homem bêbado no asfalto com uma garrafa de aguardente do lado foi o fim da picada para o meu espírito. Não aguentei e tirei o cinto e ataquei o meliante sem dó. Foi uma baita de uma sova, de arrancar pica-pau do oco. Recuperado da sova, ainda teve a cara de pau de apresentar defesa inteligente e dizer que estava olhando as estrelas e que como o seu ouvido estava muito próximo do asfalto e em razão disso, ao perceber barulho de rodas, se levantaria imediatamente.
...iria tomar um refocilante banho de cachoeira...
- Não sei não compadre, talvez, neste caso o cidadão tenha razão, esta defesa tem respaldo na física.
- Só que alguém poderia se assustar com o miserável ao ver cena tão inusitada e se envolver em acidente grave. O comandante também colocou esta antítese e eu logo refutei colocando esta última tese que desabou a segunda. Pelo menos o meu segundo grau serviu paras isto, conversar com mais elegância e poder me defender. Ao final riu e muito e mandou colocar na minha ficha este bom serviço prestado à comunidade. Nunca se esqueça, o homem é uma peste! Tem coragem de pegar um cego à traição!
Rindo ainda, O Pé de Bota voltou os seus olhos para a máquina e pediu outra filha-do-senhor-do-engenho e levou a mão na algibeira fazendo balanço do dinheiro que carregava e decidiu enfrentar a sorte. Ora essa, tinha tido um dissabor ao levanta com a vó atrás do toco, um sabor ao ver a patroa rolar como uma pipa, um dissabor em brigar com ela e ficar sem o seu leitinho e empatando o jogo tinha ficado muito satisfeito com o caso do ceguinho que houve muito pior em sua escaramuça doméstica e segundo as suas contas aquele tinha perdido o jogo por 5x1, ou seja perdera para a mulher, para o hóspede duas vezes que usou impropérios e cacetada, para o Ceguinho e, finalmente para a Polícia. Repensando as ideias chegou na tese insofismável que precisava urgentemente de emagrecer e imaginou que deveria de refazer estas contas, para apurar os verdadeiros prejuízos e lucros, já que ficar sem o café da manhã poderia ser sopesado como lucro e não como perda. Só que este pensamento complexo ficaria para mais tarde. Logo se lembrou da expressão que corria no seu cérebro como uma ladainha que adotara: infeliz no amor, sorte no jogo. Nas sua matemática estava infeliz no amor, isto poderia ser indício de que poderia ter muita sorte na jogatina.
Sorveu aquela-que-matou-o-guarda com ardor e resoluto se dirigiu firme para a máquina disposto a jogar. Descia a alavanca e nada, novamente e nada. Sem entregar nenhuma moedinha de volta a máquina sorveu todo o dinheiro do militar que ao se ver sem nada, nem o da água-de-briga, rosnou altissonante:
...tinha coragem de mamar em onça e bater na cara dos filhotes...
-Assim não vale, fui roubado no cerrado. Esta máquina está com defeito, ela foi programada pra roubar. E o seu sangue voltou a ficar complicado, subiu para a cabeça, turvou os neurônios e deixou os seus olhos injetados de fúria e, sacolejava a barriga com os nervos em fogo. Ao ver um facão no balcão resolveu apossar-se dele e atacar a gaveta da ladra. Zé do Bar ficou estupefato, a não acreditar no que via, e, sentindo perigo sanguíneo no horizonte, ficou imóvel. O certo é que o cidadão tinha coragem de mamar em onça e bater na cara dos filhotes. A máquina resistiu como pode, mas afinal perdeu para o facão e o nosso homem avançou no dinheiro e saiu do bar atônito e, logo depois, não acreditava na burrice que tinha feito. Depois desta demonstração de testosterona, descontrolado, já imaginando as consequências nefastas, se julgando em outro prejuízo, descambou para o alto do Santana, iria tomar um refocilante banho de cachoeira, lá na Cachoeira das Andorinhas.
Na subida do morro, ja na estrada de terra caiu e bateu feio com a testa no chão e exclamou:
- Arre, praga da patroa! só pode ser praga da patroa Dindinha!
O que o nosso personagem não percebeu é que ao cair perdeu o dinheiro quando ajeitava o corpo e a roupa do tombo.
...dinheiro nunca aceitou desaforos...
Boca de Asfalto. Lá no alto do morro passou pelo Boca de Asfalto que vinha montando morro abaixo uma mula vistosa chamada pelo nome de Londrina. Mal cumprimentou o seu amigo e seguiu caminho. Pouco tempo depois Boca de Asfalto que ia em missão de sorte até a Rua 15 jogar na loteria, encontrou todo o dinheiro perdido. Os seus olhos brilharam e prometeu apostar o que tinha na algibeira e mais o achado na sorte. Explico que o cidadão tinha sonhado a noite inteira que tinha ganhado na loteria. Logo, inferiu que o perdedor do dinheiro poderia ser o Pé de Bota que já estava mergulhado nos chás-de-cana e andava transtornado. Disse para si que não o devolveria, afinal das contas o cidadão era um animal e dinheiro nunca aceitou desaforos, e resumiu que o dinheiro estaria em melhor companhia consigo. Isto acertado entre a tese da devolução e a antítese da apropriação, tomou caminho sem nenhuma crise de consciência.
...nada de relaxações...
Pé de Bota permaneceu na cachoeira por um bom tempo frigorificando a sua cachimônia e tentando pensar no ocorrido com metodologia. Não conseguiu coordenar bem os pensamentos, mas concluiu que a sua vida não andava bem e prometeu a si mesmo se saísse bem da estória que tinha adentrado seria outro homem, não frequentaria mais bares. Voltaria a frequentar a Igreja Assembléia de Deus com a sua Dindinha, algo que sempre fizera outrora com muito pouco entusiasmo. Era isso mesmo, pensava enlevado, o caminho é ser evangélico, com a bíblia debaixo do braço, nada de jogos e café-branco, tudo com o reforço dos exercícios físicos e moderação na comida. O seu lema agora era: nada de relaxações! O problema era o cão. Dindinha adorava aquele cão amarelo e de pequeno porte, chegava a pegá-lo no colo, tratava-o como se fosse o seu bebê. Tinha recolhido o bicho, em petição de miséria, fuçando o lixo da rua quando era recém nascido, quando se viram foi amor à primeira vista. Daí o nome Carente, em um momento de muitas emoções.
Uma fome terrível tomou conta de seu estômogo e tomou a decisão de ir correndo da cachoeira até a sua casa lá no Bacalhau, com o porém de evitar a Rua das Pedra. O exercício faria parte do novo homem que renascia do caça-níquel e outros dissabores, além de ajudar no seu emagrecimento, pensou. E assim, seguiu caminho. Foi um esforço brutal, o fôlego ficou curto alguns minutos depois. Diminuiu o ritmo, respirava com muita dificuldade e aos trancos e barrancos, sacolejando a pança, encarou o morro acima perto do Bacalhau já com as pernas pesando toneladas. Inaugurando a sua nova filosofia religiosa falava de si para si: sangue de Jesus tem força, só falta mais um pouco! sangue de Jesus tem força! nada de relaxações!
Ao chegar próximo à sua casa sentiu um cheiro delicioso de sopa, que logo identificou como a sopa da Dindinha, guloseima que apreciava e muito. Bateu à porta com bastante humildade, preparado pra virar comida de onça, e a patroa ao abrí-la e ver a sua testa com um galo graúdo desatou a rir e como ria, riu como nunca tinha rido antes e disse abrindo caminho:
- Passa já pra dentro. Tratando o homem como se fosse seu cachorro. Este com o rabo no meio das pernas abaixou a cabeça e entrou. Trocou a roupa e sentou-se à mesa onde esperou a sopa que foi servida por sua esposa. E como comeram sopa neste dia, tudo regado com muito queijo parmesão. Neste momento o nosso protagonista já tinha esquecido a nova vida que prometera levar, mormente quanto a moderação na comida. Depois de se fartar sentiu uma dor na coxa esquerda e arrastando a perna foi dormir, ajeitou a perna contundida e tomado pelo cansaço chegou ao sono R.E.M. roncando pela tarde toda.
Banho de pólvora com a Iraça Preta. Ao acordar o nosso herói levantou da cama com muita dificuldade, a dor na perna aumentara e muito
. Sopesou que deveria de tomar atitudes urgentes, urgentíssimas, contra a urucubaca que lhe perseguia, ou melhor deveria de procurar auxílio místico com a sua velha conselheira
Iraça Petra, uma Senhora muito respeitada pelos seus poderes de melhora na vida das pessoas, apesar de fazer badernas na cidade em razão de seus porres e de sua valentia. O nosso indíviduo inclusive certa feita foi prendê-la por valentias e ela boquejou pragas na viatura policial e elas pegaram no veículo como rabo. Logo na primeira esquina a viatura policial bateu em outro carro, o nosso homem ficou estupefato e desde então passou a prestar mais atenção na Iraça Preta e acabou ganhando o seu primeiro banho de pólvora gratuitamente. Por conseguinte, não se libertou mais desta mania, já estava até gostando às deveras da fumaça. A moça era imensa, pesava bem mais de cem quilos. Isto deliberado saiu arrastando a perna em uma caminhada longa e penosa até o Chupa Osso.
A concorrente Dona Fátima, um terror, com nova técnica mística.
Ao chegar na casa de benzimentos encontrou Iraça Preta muito satisfeita, todo sorrisos. Neste momento do nosso relato é necessário esclarecermos um percalço que a nossa personagem sofrera nas últimas semanas e o porquê dela estar euforicamente feliz com a desgraça alheia, mas tudo justificável. O fato é que a terrível concorrência aparecera no destino dela e os seus fregueses desapareceram repentinamente de sua casa, simplesmente, trocada por outra mulher que viera de fora prometendo mundos e fundos, uma verdadeira concorrência desleal. Como o novo é sempre melhor e o povo gosta de coisas diferentes, atraí o pessoal como mosca encantada pela luz, a chegada da concorrente ou de Dona Fátima foi um estrago para as finanças da nossa senhora que ficou depressiva e revoltada com a população em razão de achar que sendo da cidade, ter prestado serviços relevantes há décadas não poderia ser simplesmente desprezada repentinamente. Pensava, ainda, que o pessoal não podia abandonar o nacional pelo de fora. A concorrente chegou aqui na cidade a plenos vapores, por primeiro distribuiu milhares de panfletos com o seguinte anúncio:
ATENÇÃO
ASTRÓLOGA E BENZEDEIRA DONA FATIMA
Consultas com cartas de tarô, búzios e defumações
Trabalhos de mesa branca, faz e desfaz
qualquer tipo de trabalhos espirituais
A solução para qualquer tipo de problemas:
pessoais, comerciais, espirituais, amor não
correspondido, saúde, inveja, vícios, mal olhado.
Não perca mais tempo, procure hoje mesmo!
Trabalhos sérios e com sigilo
FAZ AMARRAÇÃO E SIMPATIAS
Atende-se de Segunda à Sábado das 08:00 às 20:00 horas
No final do panfleto tinha o endereço e telefone. Se não bastasse o marketing agressivo por panfletos com meia dúzia de distribuidores, fez anúncio na rádio FM. Os primeiros clientes ganharam consulta, alguns com destaque na sociedade foram recebidos até com um cafezinho. Afirmou que a cidade tinha um brilho espiritual em razão de ter sido erguida por escravos e que estava vindo para ficar em definitivo.
O sucesso foi absoluto mormente em razão de Dona Fátima ter surgido com uma técnica inovadora nunca explorada por Iraça Preta, ou seja, a técnica de benzer dinheiro e joias, com promessas firmes de abrir caminho e trazer boa sorte. O benzimento do dinheiro servia para dobrá-lo entre outras coisas nos negócios amarrados que sempre não davam certos. Nos trabalhos o alvo também era afastar um espírito chamado de
Tranca Ruas. Um Exu que gosta de ficar do lado de fora das portas das casas, malicioso, amigo das zombarias, usuário de álcool, tranca a vida das pessoas que não agem corretamente por qualquer motivo, no caso as pessoas ficam como se estivessem em um atoleiro ou numa areia movediça, não saindo do lugar. Outra utilidade de abençoar o dinheiro era curar as pessoas. Explico, se uma pessoa tem sessenta e cinco anos, o consulente de classe média deveria providenciar a quantia de sessenta e cinco mil reais ou mil reais para cada ano de vida, se fosse da classe econômica o valor era abaixado para sem reais. Com as joias e o dinheiro a prestadora dos serviços místicos trabalhasse neles de um dia para o outro com a promessa do consulente de não revelar nada à família, aos amigos ou outras pessoas, sob pena da corrente ser quebrada e o encanto rodar por água abaixo. Cumpriu tudo no início com honestidade, explicou que quando nasceu a sua finada mãe que lhe ensinara o ofício lhe batizara com este nome em homenagem a à Nossa Senhora de Fátima. Esta explicação gerou conforto e admiração nos fregueses que passaram a ver nela a figura de uma pessoa abençoada que traria muitas graças a todos. Não bebia e não fazia escândalos, o que fez com que fosse comparada com Iraça que ficou em visível desvantagem. Outro procedimento que agradou e muito a população foi a leitura solene de uma oração impressa em um papel de boa qualidade em todos os trabalhos:
Muito grande, muito forte, Seu Tranca Ruas vem trazendo a sorte
Salihed, Mehi Mahar Selmi Laresh Lach Me Yê!
Saravá, Senhor Exu Guardião Tranca Ruas!
Saravá, Ogum Sete Lanças da Lei e da Vida!
Saravá Pai Ogum!
Saravá Mãe Iemanjá!
Saravá, Regente Oxalá!
Saravá, Umbanda!
E, assim, Dona Fátima foi angariando simpatias e fama, até que em um belo dia, na parte da manhã, o pessoal descobriu que a cidadã tinha anoitecido com uma quantia respeitável em dinheiro e joias e não tinha amanhecido. Bateu o desespero com
animus necandi. Apenas uma das vitimas tinha colocado a quantia de sessenta e seis mil reais, idade de sua esposa, e as suas joias com a promessa de curará-la de doença grave. Fátima convenceu o freguês que a mulher acamada tinha recebido trabalho negro de uma ex-empregada que tinha sido demitida em razão de desentendimentos. E como a nossa prestadora de serviços, sem que ninguém tivesse contado o caso tinha acertado no desentendimento a desconfiança preliminar foi rompida como por um passe de mágica. A notícia espalhou talqualmente fogo de morro acima, foi um Deus-acuda. Logo a nossa titular das artes místicas ficou sabendo e se refestelou como nunca com o malsucedido, não que desejasse o mal alheio mas com o desaparecimento da concorrente desleal e não confiável e o provável restabelecimento das coisas.
O nosso cidadão, foi o primeiro cliente que apareceu após o desparecimento sem notícias, até o momento, de Fátima. Por isso, a alegria de Iraça e o tratamento especial dispensado. Foi agarrado pelo braço já na soleira da porta e de supetão, encabulado com o tratamento
vip, pediu de pronto um restaurador banho de pólvora, o seu serviço preferido. Tal procedimento encantado consistia em fazer um meio-círculo de pólvora, colocar uma vela vermelha no centro, outra na extremidade esquerda e a última na direita. Este rito visava formar uma trilogia em simpatia pacificadora do mal. Isto feito o indivíduo foi colocado no meio dele e depois de riscado o fósforo com todo o cuidado, uma pequena explosão aconteceu e uma fumaça subiu infestando e obnibulando todo o ambiente. Após a fumaça da pólvora subir pelo ambiente da sala da Sra. Iraça o cidadão se sentiu outro homem, renovado e livre de qualquer espírito maléfico, o seu corpo estava leve. Só faltava fazer as pazes com o seu compadre, já planejada em sua cabeça, assim que recebesse o próximo salário e já pensava em tomar novamente aquele líquido doce, aquela cachaça do coração.
Zé do Bar, um empresário de respeito. O leitor deve imaginar que este pequeno empresário é muito tolo só que a sua vida merece équenas pinceladas nesta perdra digital. Ao contrário, o cidadão tem iniciativas e regras inteligentes. Foi herdeiro aqui no buraco de uma boa gleba de terra de terras onde passou a criar um pequeno rebanho de gado Nelore, e, ao depois, de regularizar inventário e formal de partilha comprou um pequeno alambique de cobre o qual foi aboletado em um bom galpão, isto concluído plantou um canavial do lado. O terreno plano tal qual uma mesa facilitou tudo, a fartura da águua do lado facilitava o sua irragação. Aprendeu através de um manual que o segredo de uma boa cachaça estava em saber retirar a chamada cachaça do coração destilada conjuntamente com a cachaça da cabeça e cachaça do rabo. Uma ver obtida a cachaça do coração, líquido precioso, o segundo passo era armazená-la em tonéis de carvalho por alguns anos. Na sua eucaristia tinha uma regra, só bebia apenas uma dose por dia quando se sentia extremamente bem ou ramente e no máximo três doses quando produzia já que o seu corpo passava por verdadeiro trabalho escravo e o líquido lhe dava energias extras na dor quase insuportável desta lida. A sua cachaça era muito cara, o dobro das comuns e mesmo assim, levava prejuízo. E qual era o seu lucro? O primeiro é que se tratava de um homem muito trabalhador que tinha prazer em gastar energias ou cortar a cana com podão, em transformá-la em caldo, fermentá-lo e depois de exatas 36 horas, passar um final de semana inteiro destilando o líquido que saía em um primeiro momento na forma de cachaça de cabeça, com muito material e muito forte, ao depois a sua preciosidade, a cachça do coração e por último destilava a cachaça do rabo também tóxica. Outro trabalho era colocá-la em barris de carvalho e garopa que lhe subtraíam até 15% do líquido anualmente. Esta química nunca cansou a sua mente e se sentia como um cientista, em segundo lugar ganhava indiretamente, uma vez que quem ia ao seu estabelecimento comprava outros produtos, em terceiro lugar sua boa fama espalhava pela região. Ao lado disso, se divertia a valer com as figuras que compareciuam no bar, ganhava o riso de graça que alimentava o seu espírito galhofo. Parte do produto era ofertado de graça aos que nunca tinham ido ali ou para um morador especial e, como era difícil explicar que pagava para trabalhar nesta arte, ninguém acreditava. A sua família torcia o nariz e ninguém estava disposto a trabalhar de graça nesta matemática difícil, eles queriam o lucro fácil ou que as pingas fossem todas misturadas, que o preço abaixassse e que toda bebida fosse vendida rapidamente. Cortar cana com o podão, sem queimá-la, com um olho atento nas cobras cascavéis que gostam de se aninhar no pé dela, algo impensável para os seus familiares. Tentava explicar que tal método em um primeiro momento trazia lucros e muita dor de cabeça para os clientes e em um segundo momento espantava o freguês em definitivo levando o seu nome para o beleléu. Sabia de maneira sólida que as coisas funcionavam de maneira torta e não de maneira reta como a sua família imaginava e os seus concorrentes. Qualidade acima de tudo, seu lema, já que a concorrência era feroz e maledicente. A sua cachaça do coração curtida pelo prazo mímino de três anos, a que geralmente vendia, ficava no zero a zero em termos de prejuízos e lucros. Assim, ia levando a vida e progredindo aos poucos, na chácara e no bar. Tanto é que comprou depois de alguns anos mais cinco alqueires e hoje é um homem que muitos chamam aqui de controlado outros gostam de dizer controladinho, ou, se não é rico, não é pobre, um cidadão que não acredita em dívidas bancárias e muito menos em agiotas que rondam a cidade como urubús no bolso dos incautos. No cômodo do bar de sua propriedade, guarda em um compartimento nos fundos verdadeiros tesouros ou barris com mais de dez anos de envelhecimento, estes só para a diretoria. Quanto ao apelido, é uma mania do povo, se pudesse faria um retificação judicial do nome nos registros públicos, todos o tem e isso passou a ser um orgulho tanto é que colocou Zé do Bar e cachaça do coração em um luminoso de Neón como se ele fosse o único e verdadeiro Zé. Quanto ao do seu amigo Pé de Bota, virou também orgulho, ora essa, falavam, temos que ter uma marca e levar a vida no riso, rindo deles mesmos e dos outros. Outro acontecimento digno de nota que ocorreu aqui no buraco foi um tal Dr. que aqui veio passar alguns meses e sabendo desta mania local disse que eles não colocariam nenhum rabo nele e para isto tomou a seguinte resolução, evitaria sair do hotel. Mas como ficar muito tempo dentro de um hotel é estressante de quando em quando o tal do Dr. colocava a cabeça para fora para vislumbrar o tempo e as ocorrências suavizando a sua meta ousada de sair ileso dos apelidos. E não é que o homem saiu furioso com o apelido de Dr. Cuco pela mania de colocar a cabeça para fora como se fosse este passarinho do relógio. O riso no Bar do Zé foi farto e o caso virou uma lenda dos apelidos que se espalhou aos quatro ventos. Daí em diante ninguém mais ousou repudiar os apelidos, era melhor dar uma de joazinho-sem-braço, quando eles surgiam, apelar provocando barracos, fazia com que ele pegasse como rabo.
Recobrado do ataque à máquina ficu dizendo consigo mesmo, então é assim, compadre de dia, de noite na forquilha, deixa estar, quero indenização, inclusive moral e, resoluto foi procurar o seu conhecido Dr. Gravatinha que tinha adquirido este apelido em razão de ficar perambulando pela ruas da cidade sem paletó, mas sempre com uma gravata fiel no pescoço. Depois de fazer a consulta e muitos cálculos sociológicos, ficou sabendo que as ciências jurídicas era uma disciplina nobre, orgulhosa e que não aceitava que ninguém alegasse a sua própria torpeza em benefício próprio, ou seja, se ele Zé estava em flagrante delito mantendo a máquina, como poderia demandar prejuízos sofridos em razão dela. E o pior, a regra era tão sólida, que não havia nenhuma maneira de burlá-la.
Assim, as coisa ficaram elas por elas.