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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu corpo dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas, Machado de Assis, 1839-1908 ou Memórias Póstumas de Brás Cubas

          Machado de Assis 1839-1908: "Qualquer um teria organizado este mundo melhor do que saiu. A morte, por exemplo, bem poderia ser tão-somente a aposentadoria da vida, com prazo certo..."
                           Machado de Assis é uma espécie de milagre... (Harold Bloom, reconhecido crítico literário de Nova York-EUA)                                          


                        A pena da galhofa e a tinta da melancolia. As amargas palavras do título deste texto fazem parte da dedicatória do sensacional livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, do notável escritor brasileiro Machado de Assis, 1839-1908 que alguns dizem pertencer a Escola do Realismo, etiqueta discutível, contudo, há uma unanimidade, é uma obra prima. Por curiosidade histórica e para situarmos melhor na literatura brasileira, lembro que Machado e Casimiro de Abreu nasceram no mesmo ano de 1839, só que Casimiro morreu com 21 anos, de tuberculose, em 1860. Neste livro um defunto, no caso Brás Cubas, se recusa a ir para o túmulo antes de narrar as suas memórias com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, na primeira pessoa o qual faz esta amarga dedicatória, colocando, logo, na segunda página "Ao leitor.", dando um toque de leve ironia. O nosso mestre nasceu no Rio de Janeiro, no Morro do Livramento, onde passou a infância vendendo balas, como engraxate, coroinha até que aos 16 anos arrumou emprego como aprendiz de tipógrafo. Machado tinha tudo para não dar certo, é uma pessoa ímpar em que o talento revelado supera a sua extrema pobreza, a epilepsia, que a respeito dizia "sentir umas coisas estranhas" e a gagueira, ademais, era mulato em um país que sempre pretendeu ter ares de europeus. Segundo alguns estudiosos parte do livro foi escrito em Nova Friburgo, ou melhor, parte dele foi ditado a sua mulher Carolina, nesta época Machado estava com uma inflamação cronica nos olhos e temia ficar cego. Não podemos esquecer que o nosso mestre teve uma grande ajuda de Maneco Almeida, Diretor da Imprensa, já famoso quando Machado foi trabalhar como aprendiz de tipógrafo, esclareço que Maneco é Manuel Antônio de Almeida, autor, simplesmente, de Memórias de um Sargento de Milícias, uma das melhores, no meu entendimento, obras da literaturas brasileira, livro que acho indispensável e que recomendo, os vestibulandos que o digam. Este livro só teve uma edição, ficou esquecido por quase cem anos quando foi redescoberto por Mário de Andrade, na época, no Rio afrancesado e formal, o riso provocado por um herói pândego e pilantra não era levado a sério.


                               O nosso herói quase foi demitido e a grande ajuda. É fato histórico que o superior hierárquico ao comentar com Maneco Almeida que o jovem Machado recém contratado era pego matando trabalho em um canto lendo um livro queria a sua demissão. Maneco, em sua inteligência literária, viu em uma pessoa que gostava de ler, coisa raríssima ontem e hoje algum talento e fez foi promover o nosso herói. Aqui vai outra lembrança de Maneco, morreu em um naufrágio do navio Hermes, na costa do Rio de Janeiro em 186l, aos 30 anos de idade.   

                               Brás Cubas. O livro é uma crítica sutil à sociedade abastada do Rio de Janeiro onde milhares de Brás Cubas, criados e mimados no luxo, com requintes franceses, se torna bacharel em Coimbra e que em seus empreendimentos criam produtos hilariantes como O Emplasto Brás Cubas. Pessoas que se regalam com prostitutas como Marcela, na juventude, à custo de alguns contos de réis. O personagem no final, ainda, diz que saiu no lucro, apesar da vida estéril.
                          

                               Livro histórico. O defunto ou Brás Cubas tinha sido um garoto  rico, mimado, mocinho displicente, um adulto pernóstico, privado de compaixão e de generosidade, além de condescendente consigo próprio. Este livro não é uma obra qualquer, faz parte da história da literatura brasileira. Foi editado em 1881 e causou na época muita polêmica. Ruptura com a narrativa linear. É histórico na literatura brasileira por não ser uma obra linear, ou seja, começa de trás pra frente, daí a primeira pincelada de genialidade. Não é só isso, Assis era culto e usava conhecimentos e outras obras em seus textos, a isso chamamos em literatura de intertextualização. Só os grandes sabem intertextualizar, só Machado sabe ser irónico, debochar de tudo e de todos com leves gotas de humor negro, tudo na intertextualização. É histórica também em razão da obra machadiana ser dividida em duas fases: antes e depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas que inaugurou a fase realmente maior de suas obras. Alguns pesquisadores encontram semelhanças entre esta obra e a do francês Laurence Stern, autor de Tristan Shandy, um gigante da literatura francesa.

                              Originalidade. Machado saiu do usual na nossa literatura e com pinceladas de ironia, com o fino do humor negro e com algumas nuances de filosofia, em uma subversão radical, criou um dos melhores livros brasileiro. Um dos maiores críticos da época ou Sílvio Romero fez comentários acerbos sobre a obra: "Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer dos órgãos da palavra. Ele gagueja no estilo, na palavra escrita como fazem outros na palavra falada." Machado era gago e isto pegou mal para Romero, pontos para Machado que conseguiu a polémica em que Sílvio enfiou os pés pelas mãos. Mais tarde Sílvio Romero, Machado de Assis e outros fundariam, a academia Brasileira de Letras em 1896, instituição que Machado foi o primeiro presidente ocupando a cadeira n° 23, a qual tem como patrono José Alencar, falecido em 1877, e amigo do nosso mestre.

                               Há na obras belas pérolas machadianas, sobre o amor de Brás com a prostituta Marcela, o narrador defunto sentenciou:

                                               "Um amor que durou onze meses e cinco contos de réis..."
                                                   

                                     O capítulo cinquenta e cinco é, surpreendente, achei sensacional, ao descrever com todo o pudor machadiano o auge do amor entre Marcela e Brás Cubas, o qual cito literalmente ou os pontos, as exclamações e as interrogações ou o velho diálogo entre Adão e Eva. Deverasmente, o auge do amor é cheio de interrogações, pontos e exclamações, ao depois, contudo, pode vir o silêncio tumular entre os casais, sem nenhuma exclamação, interrogação ou ponto, outrossim o nome do título O Velho Diálogo de Adão e Eva veio a calhar:

                                               Capítulo LV - O Velho Diálogo de Adão e Eva

                                                Brás Cubas . . . . . ?
                                                Virgília . . . . . .
                                                Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                                                Virgília . . . . . . !
                                                Brás Cubas . . . . . . .
                                                Virgília . .  . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                                                Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                                                Virgília . . . . . . .
                                                Brás Cubas . . . . . . . . . . . . ! . . . . . . . . !. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !
                                                Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . ?
                                                Brás Cubas . . . . . . . !
                                                Virgília . . . . . . . !


                                O final do livro, famoso e antológico, também é irónico e mordaz, quando o morto, finalmente, querendo ir ter com o repouso eterno, confessa para o leitor em um tom de ironia e pessimismo no último capítulo denominado de Das Negativas, por sinal :

                              Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.


                                      Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, é uma das melhores lembranças que machado nos legou. Esta frase é famosa, é o próprio Machado, casado com Dona Carolina, falecida quatro anos antes ou em 1904, conhecido como o Bruxo do Cosme Velho, assim como o seu personagem não teve nenhum filho, viúvo, sozinho, doente e pobre, Machado morreu às três horas e quarenta cinco minutos do dia, padecendo de um doloroso câncer na boca e suas últimas palavras ao nosso grande escritor José Veríssimo foram: -A vida é boa! Pelo menos algo de positivo ocorreu, a cidade do Rio de Janeiro no ano de 1908 parou para acompanhar o seu enterro. Rui Barbosa discursou no cemitério São João Batista e um ano depois, Olavo Bilac, também amigo e fundador da academia brasileira, na Rua Cosme Velho, n° 18, na janela do sobrado, onde o nosso escritor vivia na época do seu passamento, ocasião em que se inaugurava uma placa em sua homenagem.


                                    Esposo amoroso. Nesta época em que o amor parece esfarelar na descartabilidade eletrônica e virtual, é surpreendente ver o nosso mestre mostrar tanto carinho, tanto amor pela sua esposa, a portuguesa Carolina com quem viveu quase quarenta anos. Machado contava em morrer primeiro que ela, temia não dar conta de cuidar de si e a solidão. Como poeta Machado de Assis dedicou a ela o mais lindo dos poemas brasileiros ou A CAROLINA , também conhecido como "Ao pé do leito derradeiro".  Ao pé do leito derradeiro, expressão que tenho como perfeita ainda mais complementada pelas pobre querida e trago-te flores - restos arrancados da terra ( a redução das flores a restos arrancados é genial):



A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas desta longa vida.
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.


Pulsa-lhe o afeto verdadeiro
 Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
                                                           
Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos


 


Carolina, falecida em 1904

 
E ora mortos nos deixa separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulada,

São pensamentos idos e vividos.

                             Também fez um desabafo contundente em relação as suas saudades de Carolina:

                            "Foi a melhor parte da minha vida e aqui estou só no mundo...Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor, primeiro, porque não acharia a ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades e eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente, são os melhores; mas a vida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira que a cada um cabe. Aqui me fico por ora, na mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a meiga Carolina. Como estou  à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la. Ela me esperará."                   


                            O autor comenta o livro. Machado é o mínimo do necessário na literatura, não deixe de apreciar esta obra que faz parte de sua famosa trilogia juntamente com Dom Casmurro e Quincas Borba. Nada melhor que algumas parcas palavras do próprio autor falando das memórias:

                          "Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não foi difícil antever o que pode sair deste conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião." 
                                     
                                "Há na alma desse livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo  e áspero, que está longe de vir dos seus modelos..."

                           Nos finalmentes e queijandos. Seria Memórias Póstumas o melhor livro da literatura brasileira, como alguns afirmam ou é Dom Casmurro, belas teses e antíteses que espreitam a literatura brasileira? Outrossim, há uma discussão elevada nas letras brasileiras sobre quais seriam os melhores contos machadianos. Caríssimos, toma lá o nosso singelo palpite: O Alienista, divertida brincadeira sobre a loucura, Anton Tchekov, um dos nossos escritores russos favoritos, escreveu um conto parecido, um dos melhores do mundo ou Enfermaria Número 6, esclareço que os dois não se conheciam pelas obras: Teoria do Medalhão, se os jovens prestassem mais atenção nestes conselhos, já seriam velhos experientes; Ideias de Canário, sobre os homens o canário filósofo do conto teceu os seguintes comentários que gosto tanto e fica marinhando no nosso cerébro: "Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se lhe devesse pagar os serviços, não seria com pouco, mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.", vislumbrei a intenção do autor, através do canário, em dizer que as verdades são relativas, algo às vezes difícil de entender; um  conto sensacional que coloca as ideias de canário em confronto com as do homem que aprisiona um pássaro; não esqueçam do conto O Enfermeiro em que este mata o paciente e a grande ironia do destino, o punctum dolens do conto, a vítima, secretamente, em testamento, havia deixado todos os seus bens àquele;para uns e verdadeiros para outros; A Cartomante; Pai Contra MãeNoite de Almirante, onde o nosso mestre coloca o marujo Deolindo Venta-Grande em uma situação constrangedora, é o conto da decepção onde os juramentos são apenas frivolidades para uns e verdades para outros; O Espelho, um estudo sobre a personalidade. De todos eles acho perfeito e filosófico Ideias de Canário, não canso de dizer  que ele soube, como um mestre, relativizar a verdade, colocando a verdade na boca do homem e depois no bico do pássaro. É um conto esquecido pois não vejo este escolhido entre os melhores, nas relações que encontro, ao contrário de Noite de Almirante, exemplificativamente, que sempre aparece, e outros. Como gostamos de por as idéias para dialogarem, ao lado do nosso milagre, colocamos outro gigante, Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão, apreciado por ele, algo raro em sua época, mostrando que ele sempre esteve e está na frente da maioria dos homens. Só que este tem um pensamento, na maioria das  vezes bem diferente do mestre, sobre o casamento tão aprecidado por este, o alemão encerrou matematicamente: Casar-se significa duplicar as suas obrigações e perder metade dos seus direitos; sobre a imortalidade sentenciou: "Desejar a imortalidade é desejar a perpetuação de um erro."; sobre a amizade vituperou: Quem é amigo de todo mundo, não é amigo de ninguém.




                                                   
Rio de Janeiro em 1839, ano em que Machado de Assis nasceu
Arthur Schopenhauser, 1788-1860, filósofo alemão
                                           

                                                     


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