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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O canto da sereia, Manoel Odorico Mendes e os nossos investimentos



Cerâmica grega antiga em que o
solete Ulisses resiste ao canto da
sereia fazendo-se amarrar


  solerte=esperto                                

              Da obra A Odisséia, versos, traduzida por Manoel Odorico Mendes, 1799-1864. A tradução do grego para o português de Manoel Odorico da Odisséia é um dos maiores monumentos da língua portuguiesa:


Mal acabava, à ilha das Sereias
Avizinha-se a nau com vento fresco.
Súbito acalma, e um deus serena as ondas;
Já ferrado no bojo o pano arreiam,
Do liso abeto ao golpe alveja a espuma.
De cera um disco a bronze em porções corto,
Forte as machuco e as amoleço ao lume

Do Hiperiônio Sol, de homem por homem
Os ouvidos entupo; ao mastro em cordas
Atam-me pés e mãos, e aos remos tornam.
Eis, a alcance de um grito, elas, que atentam
O impelido baixel, canoro entoam:
“Tem-te, honra dos Aqueus, famoso Ulisses,
Nenhum passa daqui, sem que das bocas
Nos ouça a melodia, e com deleite
E instruído se vai. Consta-nos quanto
O Céu vos molestou na larga Tróia,
Quanto se faz nos consta n’alma terra.”
Destarte consonavam: da harmonia
Encantado, acenei que me soltassem;
Mas curvam-se remando, e com mais cordas
Perimedes e Euríloco me arrocham.
Nem já toava ao longe a cantilena,
Quando os consócios, desuntada a cera,
Desamarram-me enfim.



                                                          Em razão da passagem destes versos é que surgiu a expressão canto da sereia como algo irresistível que o solerte Ulisses superou fazendo-se amarrar no mastro da embarcação com a recomendação que não fosse solto, nem que se pedisse, ao contrário, que as amarras fossem reforçadas. Sereia é um ser mitológico, parte mulher e parte pássaro, em versões a partir da idade média por influência da igreja estes seres aparecem como parte mulher e parte peixe. Filhas do rio Aquelôo e da musa Terpsícore, eram tão lindas e cantavam com tanta sonoridade que enfeitiçavam e dominavam as mentes dos tripulantes dos navios que passavam por elas para que estes colidissem com os rochedos e afundassem. Uma vez no mar os tripulantes eram DEVORADOS. É um dos mitos da mulher devoradora. A falácia das Sereias é clara nos seguintes versos: Nenhum passa daqui, sem que das bocas/Nos ouça a melodia, e com deleite/E instruído se vai.

                                                               Algumas das sereias que aparecem na literatura clássica são:


                                                               Pisinoe, controladora de mentes
                                                              Thelxiepia, a que enfeitiça
                                                               Ligeia, a de doce sonoridade

                                                          O canto da sereia pode ter entre outros significados, as nossas fraquezas, as quais demandam não só esforço como solércia para serem superadas. Mais precisamente se refere a fraqueza sexual, o aguilhão do instito que aferroa o fraco levando-o ao exício. Não há violência no início, apenas o canto mavioso.Também pode significar ser enganado por um discurso aparentemente racional e verossímil. Quantos investimentos não são verdadeiros canto de sereia, só os Ulisses solertes resistirão ao canto ou ouvirão o canto mas como o filho de Laertes e Anticléia engendrarão uma maneira de escapar destes perigos. No mercado é conhecida a prática de algumas instituições que querendo se livrar do ativo, fazem é indicá-lo aos desavisados. Todo cuidado é pouco, cair na esparrela é a regra.
John William Watherhouse,
1849-1917, retratando uma
sereia

...e instruído se vai...
                                                           Em nossas vidas passamos por tantos canto de sereias, em muitas ocasiões, às vezes exiciais, se tivéssemos sido amarrados e levados do perigo, maior proveito teríamos tirado, isto quando não perdemos a própria vida,  c'est la vie.


Manoel Odorico Mendes é maranhense, nasceu na cidade de São Luís em 1799 e descendia de família tradicional. Depois de uma vida dedicada à política e à literatura, faleceu subitamente em Londres, a 17 de Agosto de 1864. Foi o primeiro tradutor da Ilíada para português, considerado por muitos como o mais acabado humanista lusófono.
Odorico Mendes conta entre seus descendentes com um bisneto famoso : o escritor francês Maurice Druon. Desde jovem toma contacto com a poesia dos clássicos gregos e latinos. Seu  pai envia-o em 1816 para Coimbra, onde, depois de cursar os estudos preparatórios, ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Completou o curso de Filosofia Natural, após ter cursado Filosofia Racional e Moral e a cadeira de Língua Grega. Voltando ao Brasil passa a redigir um jornal, o Argos da Lei, que faz oposição ao partido representado na imprensa por outros dois jornais dirigidos e redigidos por portugueses: o Amigo do Homem e Censor Maranhense, este último editado por João António Garcia de Abranches. Foi deputado por três vezes. Em 1847, na França, dedica-se a traduzir para o português, mas com o seu próprio estilo, os clássicos, iniciando por Virgílio. Nesta empreita, publica no ano de 1854, na Tipografia de Rignoux, em Paris, a Eneida em português, numa edição que se esgotaria em quinze dias. Quatro anos depois, em 1858, edita a obra completa do poeta latino, concentrando a Eneida, as Bucólicas e as Geórgicas, com as respectivas notas, numa cuidada edição de oitocentas páginas sob o título de Virgílio Brasileiro. Após Virgílio, inicia a tradução em verso dos épicos de Homero, contudo morre em Londres quando já tinha completada e aperfeiçoada e pronta para edição, a tradução da Ilíada e da Odisseia. A Ilíada teve sua primeira edição em 1874 e a Odisseia apenas veio a público em 1928. Odorico Mendes é uma boa pedida para aprendermos inúmeras palavras portuguesas desconhecidas pela maioria da nossa população. É deleite linguístico puro.

                              

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